Nos últimos anos, a questão da penhora de salário de devedores no Brasil tem sido objeto de controvérsias. Recentemente, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu julgamento relevante sobre o tema, nos embargos de divergência no recurso especial 1.874.222.
A penhora de salário é um procedimento utilizado para garantir o pagamento de dívidas por meio do desconto direto na remuneração do devedor. Entretanto, essa prática tem gerado debates, principalmente em relação aos seus limites.
Em regra, o salário é impenhorável. Pode haver exceção a essa regra – ou seja, o salário pode ser penhorado – em caso de prestação alimentícia (como pensão devida por pais a filhos) ou quando o devedor receba valor superior a 50 salários mínimos mensais (ou seja, atualmente, mais de R$ 66 mil por mês). Essa regra e tais exceções estão no texto da lei (artigo 833, IV e parágrafo 2o, do Código de Processo Civil – CPC).
O caso julgado pelo STJ envolvia pedido de penhora de 30% de salário mensal em torno de R$ 8,5 mil, com o objetivo saldar débito de cerca de R$ 110 mil. A discussão central no tribunal foi definir se, em geral, seria possível penhorar parte de verba salarial mensal inferior a 50 salários mínimos por mês para satisfazer dívida não alimentícia.
O STJ decidiu, por maioria, que é possível a penhora de salário de devedores que recebam menos de 50 salários mínimos mensais, desde que sejam respeitados alguns requisitos. Segundo a decisão, o salário do devedor pode ser penhorado, excepcionalmente, quando ficarem inviabilizados outros meios para o credor obter seu crédito (por exemplo, a penhora e venda de bens) e, pela avaliação do impacto nos recebimentos do devedor no caso concreto, não ficar comprometido o mínimo existencial dele e de sua família.
A Corte entendeu que a proteção da lei a valor mensal recebido pelo devedor de até 50 salários mínimos é criticável, não condiz com a realidade brasileira e, assim, torna praticamente inaplicável a penhora de salário. Essa crítica à lei no julgamento do STJ tem, de fato, razão de ser, pois são muito poucos no Brasil que recebem mais de R$ 66 mil por mês. Pesquisa recente do IBGE apurou que, entre o 1% mais rico da população brasileira, foi de quase R$ 17,5 mil o rendimento mensal médio por pessoa.
A decisão também levou em conta que o CPC atual, de 2015, afirma apenas que o salário é “impenhorável”, e não mais “absolutamente impenhorável”, como constava do CPC anterior. O STJ entendeu que essa mudança na lei também favorece a flexibilização da regra de que não seria possível penhorar verba de até 50 salários mínimos mensais.
Assim, o STJ manifestou posicionamento firme de que é possível a penhora de salário ainda que não se trate de dívida alimentícia e o devedor receba menos de 50 salários mínimos por mês.
Por outro lado, o STJ também fixou limites para evitar abusos e proteger o devedor de eventuais excessos na cobrança. Além de estabelecer os mencionados requisitos para autorização da penhora de salário, a decisão determinou que o percentual da penhora deve observar as circunstâncias específicas de cada caso e garantir que sobre para o devedor valor suficiente para garantir subsistência digna a ele e a sua
família.
Esse julgamento do STJ representa uma mudança significativa na jurisprudência e traz repercussões importantes para o sistema jurídico brasileiro. Ela oferece mais segurança jurídica aos credores, que poderão contar com a possibilidade de penhorar salários para garantir o recebimento dos valores devidos. Além disso, o julgamento tende a servir de incentivo adicional aos devedores para que paguem suas dívidas, pois agora sabem que há maior chance serem penhorados até mesmo seus salários – especialmente, se altos.
Porém, o julgamento determina que a avaliação dessa penhora de salário depende da realidade de cada caso concreto. Portanto, a aplicação da decisão do STJ pode variar.
As instâncias inferiores ainda deverão definir pontos importantes, como a quem cabe provar que certo percentual de penhora de salário prejudica ou não o mínimo necessário para o sustento digno do devedor e de sua família. Nesse ponto, já vemos entendimentos variados no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Após o julgamento do STJ, há decisões tanto de que é o credor quem deve provar que não
prejudica, quanto de que é o devedor quem deve provar que prejudica (respectivamente, ações no 2091505-09.2021.8.26.0000 e no 2135183- 06.2023.8.26.0000).
É verdade que os entendimentos podem e tendem a variar de acordo com o valor do salário e outras circunstâncias em cada caso. De qualquer forma, o Brasil “não pode continuar a ser o paraíso dos devedores”, como já bem observou o próprio TJSP em outras decisões (por exemplo, no processo no 2242450-08.2021. 8.26.0000).
É desejável que se tenha isso em mente na aplicação da lei, e o julgamento do STJ contribui para o país avançar no caminho de deixar para trás essa (má) fama de “paraíso” dos maus pagadores. Essa contribuição será efetiva? Esperamos que sim, com aplicação ponderada e adequada da decisão do STJ pelas instâncias inferiores, mas só o tempo dirá.
Fonte: Valor Econômico